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segunda-feira, 18 de março de 2013

As Cartas De Ninguém


A fuga da jibóia brasileira rendeu a Harry o seu castigo mais longo. Na altura em que lhe permitiram sair do armário, as férias de verão já haviam começado e Duda já quebrara a nova filmadora, acidentara o aeromodelo e, na primeira vez que andara na bicicleta de corrida, derrubara a velha Sra. Figg quando ela atravessava a Rua dos Alfeneiros de muletas.

Harry ficou contente que as aulas tivessem acabado, mas não conseguia escapar da turma de Duda, que visitava a casa todo dia.

Pedro, Dênis, Malcolm e Górdon eram todos grandes e burros, mas como Duda era o maior e o mais burro do bando, era o líder.

Os demais ficavam bastante felizes de participar do esporte favorito de Duda: perseguir Harry.

Por esta razão Harry passava a maior parte do tempo possível fora de casa, perambulando e pensando no fim das férias, no qual conseguia vislumbrar um raiozinho de esperança. Quando setembro chegasse, ele iria para a escola secundária e, pela primeira vez na vida, não estaria em companhia de Duda. Duda tinha uma vaga na antiga escola de tio Válter, Smeltings. Pedro ia para lá também. Harry por outro lado, ia para a escola secundária local. Duda achava muita graça nisso.

— Eles metem a cabeça dos garotos no vaso sanitário no primeiro dia de escola — contou ele a Harry — quer ir lá em cima praticar?

— Não, obrigado — respondeu Harry — O coitado do vaso nunca recebeu nada tão horrível quanto a sua cabeça, é capaz de passar mal. — E correu antes que Duda conseguisse entender o que dissera.

Certo dia de julho, tia Petúnia levou Duda a Londres para comprar o uniforme da Smeltings e deixou Harry com a Sra. Figg.

A Sra. Figg não estava tão ruim quanto de costume. Afinal, fraturara a perna porque tropeçara em um dos gatos e não parecia gostar tanto deles quanto antes. Deixou Harry assistir a televisão e lhe deu um pedaço de bolo de chocolate que pelo gosto parecia ter muitos anos.

Naquela noite, Duda desfilou para a família reunida na sala de estar vestindo o uniforme novo da Smeltings. Os alunos da Smeltings usavam casaca marrom-avermelhada, calções cor de laranja e chapéus de palha. Carregavam também bengalas nodosas, que usavam para bater uns nos outros quando os professores não estavam olhando isto era considerado um bom treinamento para o futuro.

Ao contemplar Duda nos calções laranja novos, tio Válter disse com a voz embargada que aquele era o momento de maior orgulho em sua vida. Tia Petúnia rompeu em lágrimas e disse que não podia acreditar que era o seu Dudinha, estava tão bonito e adulto.

Harry não confiou no que poderia dizer. Achou que duas de suas costelas talvez já tivessem partido só com o esforço para não rir.

Havia um cheiro horrível na cozinha na manhã seguinte quando Harry entrou para o café da manhã. Parecia vir de uma panela de metal dentro da pia. Ele se aproximou para espiar.

A tina aparentemente estava cheia de trapos sujos que boiavam na água cinzenta.

— O que é isso? — perguntou à tia Petúnia... Os lábios dela se contraíram como costumavam fazer quando ele se atrevia a fazer uma pergunta.

— O seu uniforme novo de escola — respondeu.

Harry espiou para dentro da tina outra vez.

— Ah — comentou — eu não sabia que tinha que ser tão molhado.

— Não seja idiota — retorquiu tia Petúnia com rispidez. — Estou tingindo de cinza umas roupas velhas de Duda para você. Vão ficar iguaizinhas às dos outros quando eu terminar.

Harry tinha sérias dúvidas, mas achou melhor não discutir.

Sentou-se à mesa e tentou pensar na aparência que teria no primeiro dia de aula como se estivesse usando retalhos de pele de elefante velho, provavelmente.

Duda e tio Válter entraram ambos com os narizes franzidos por causa do cheiro do novo uniforme de Harry. Tio Válter abriu o jornal como sempre fazia e Duda bateu na mesa com a bengala da Smeltings, que ele carregava para todo lado.

Ouviram o clique da portinhola para cartas e o som da correspondência caindo no capacho da porta.

— Apanhe o correio, Duda — disse tio Válter por trás do jornal.

— Mande o Harry apanhar.

— Apanhe o correio Harry.

— Mande o Duda apanhar.

— Cutuque ele com a bengala da Smeltings, Duda.

Harry se esquivou da bengala da Smeltings e foi apanhar o correio. Havia três coisas no capacho: um postal da irmã do tio Válter, Guida, que estava passando férias na ilha de Wihgt, um envelope pardo que parecia uma conta e uma “carta para Harry”.

Harry apanhou-a e ficou olhando, o coração vibrando como um elástico gigante. Ninguém, jamais, em toda a sua vida, lhe escrevera. Quem escreveria? Ele não tinha amigos, nem outros parentes, não era sócio da biblioteca, de modo que jamais recebera sequer os bilhetes grosseiros pedindo a devolução de livros. Contudo, ali estava, uma carta, endereçada tão claramente que não podia haver engano.


Sr. H. Potter

O Armário sob a Escada

Rua dos Alfeneiros 4

Little Whinging Surrey


O envelope era grosso e pesado, feito de pergaminho amarelado e endereçado com tinta verde-esmeralda. Não havia selo.

Quando virou o envelope, com a mão trêmula, Harry viu um lacre de cera púrpura com um brasão, um Leão, uma Águia, um Texugo e uma Cobra circulando uma grande letra "H".

— Anda depressa, moleque! — gritou tio Válter da cozinha. — fazendo o quê, procurando cartas-bombas? — E riu da própria piada.

Harry voltou à cozinha, ainda de olhos fixos na carta. Entregou a conta e o postal ao tio Válter, sentou-se e começou a abrir lentamente o envelope amarelo.

Tio Válter rasgou o envelope da conta, deu um bufo de desdém e virou o postal.

— Guida está doente — informou à tia Petúnia. — Comeu um marisco suspeito...

— Pai! — exclamou Duda de repente. — Pai, Harry recebeu uma carta!

Harry ia desdobrar a carta, escrita no mesmo pergaminho que o envelope, quando tio Válter arrancou-a de sua mão.

— É minha! — disse Harry, tentando recuperá-la.

— Quem iria escrever para você? — zombou tio Válter, sacudindo a carta com uma das mãos para desdobrá-la e percorrendo com o olhar. Seu rosto passou de vermelho para verde mais rápido que um sinal de tráfego. E não parou ai. Segundos depois ficou branco-acinzentado, cor de mingau de aveia velho.

— P-P-Petúnia! — ofegou.

Duda tentou agarrar a carta para lê-la, mas tio Válter segurou-a no alto fora do seu alcance. Tia Petúnia apanhou-a cheia de curiosidade leu a primeira linha. Por um instante pareceu que ela talvez fosse desmaiar. Levou as duas mãos à garganta e produziu ruído de engasgo.

— Válter! Ah, meu Deus, Válter!

Eles se encararam parecendo ter esquecido que Harry e Duda continuavam na cozinha. Duda não estava acostumado a ser desprezado. Deu uma bengalada forte na cabeça do pai.

— Quero ler esta carta — falou alto.

— Quero lê-la — disse Harry furioso —, porque é minha...

— Saiam, os dois — ordenou com voz rouca tio Válter, enfiando a carta no envelope.

Harry não se mexeu.

— QUERO MINHA CARTA! — Gritou.

— Me deixa ver! — exigiu Duda.

— Fora! — berrou Tio Válter, e agarrando os dois, Harry e Duda, pelo cangote atirou-os no corredor e bateu a porta da cozinha. Harry e Duda na mesma hora tiveram uma briga furiosa, mas silenciosa, para saber quem ia escutar à fechadura, Duda ganhou, por isso Harry, os óculos pendurados em uma orelha, deitou-se de barriga no chão para escutar pela fresta entre a porta e o chão.

— Válter — disse tia Petúnia com voz trêmula — olhe só o endereço. Como é que eles poderiam saber onde ele dorme? Você acha que estão vigiando a casa?

— Vigiando, espionando, talvez nos seguindo — murmurou tio Válter enlouquecido.

Harry via os sapatos pretos lustrosos do tio Válter andando para cá e para lá na cozinha.

— Não — disse ele decidido. — Não, vamos ignorá-la. Se não receberem uma resposta... É, é o melhor... Não vamos fazer nada...

— Mas...

— Não vou ter um deles em casa, Petúnia! Nós não juramos quando o recebemos que íamos acabar com aquela bobagem perigosa?

Aquela noite, quanto voltou do trabalho, tio Válter fez uma coisa que nunca fizera antes, visitou Harry no armário.

— Cadê minha carta? — perguntou Harry, no instante em que tio Válter se espremeu pela porta. — Quem me escreveu?

— Ninguém. Endereçaram a você por engano — disse tio Válter secamente. — Queimei a carta.

— Não foi um engano — retrucou Harry com raiva, — tinha o endereço do meu armário.

— CALADO! — gritou tio Válter e algumas aranhas caíram do teto. Ele inspirou algumas vezes e então fez força para produzir um sorriso que pareceu bem penoso.

— Hum, sim, Harry sobre este armário. Sua tia e eu estivemos pensando... Você realmente está ficando grande demais para ele... Achamos que seria bom se você se mudasse para o segundo quarto de Duda.

— Por quê? — perguntou Harry.

— Não faça perguntas — disse com rispidez o tio. Leve essas coisas para cima agora.

A casa dos Dursley tinha quatro quartos: um para tio Válter e tia Petúnia, um para hóspedes (em geral a irmã de tio Válter, Guida), um onde Duda dormia e um onde Duda guardava todos os brinquedos e pertences que não cabiam no primeiro quarto. Harry precisou de apenas uma viagem para mudar tudo o que tinha do armário para o quarto no andar de cima.

Sentou-se na cama e deu uma olhada à sua volta. Quase tudo ali estava quebrado. A filmadora com apenas um mês de uso estava jogada em cima de um pequeno tanque com que certa vez Duda atropelara o cachorro do vizinho, no canto estava o primeiro televisor de Duda, no qual ele enfiara o pé quando seu programa favorito fora cancelado, havia uma grande gaiola de pássaros, antigamente habitada por um papagaio que Duda trocara na escola por uma espingarda de ar de verdade, e que estava guardada numa prateleira com a ponta dobrada porque Duda se sentara em cima dela. Outras prateleiras estavam cheias de livros. Eram as únicas coisas no quarto que pareciam nunca ter sido tocadas.

Lá de baixo veio o barulho de Duda gritando com a mãe:

— Eu não o quero lá... Eu preciso daquele quarto.... Mande-o sair:

Harry suspirou e se esticou na cama. Ontem ele teria dado qualquer coisa para estar ali. Hoje, preferia estar no seu armário com aquela carta do que ali encima sem ela. Na manhã seguinte, no café, todos estavam muito quietos. Duda estava em estado de choque.

Berrara, batera no pai com a bengala, vomitara de propósito, dera pontapés na mãe e atirara sua tartaruga pelo teto da estufa de plantas e nem assim conseguira o quarto de volta. Harry pensava no dia anterior àquela hora, desejando com amargura que tivesse aberto a carta no hall. Tio Válter e tia Petúnia se entreolhavam, ameaçadores.

Quando o correio chegou tio Válter, que parecia estar tentando ser agradável com Harry, fez Duda ir buscá-lo. Eles o ouviram bater nas coisas do corredor com a bengala da Smeltings. Então ele gritou:

— Chegou outra!


Sr. H. Potter,

O Menor Quarto da Casa

Rua dos Alfeneiros 4...


Com um grito sufocado tio Válter saltou da cadeira e saiu correndo pelo corredor, Harry logo atrás dele. Tio Válter teve que lutar e derrubar Duda no chão para lhe tirar a carta, o que foi dificultado por Harry que agarrara o pescoço do tio Válter por trás.

Depois de um minuto confuso de luta, em que todos levaram varias bengaladas, tio Válter se endireitou, ofegante com a carta de Harry apertada na mão.

— Vá para o seu armário, quero dizer, para o seu quarto — chiou para Harry — Duda, saia, saia logo.

Harry deu voltas e mais voltas no novo quarto. Alguém sabia que ele se mudara do armário e parecia saber que ele não recebera a primeira carta. Isto significava com certeza que ia tentar outra. Outra vez? E desta vez ele tomaria providências para que desse certo.

Tinha um plano.

O despertador consertado tocou às seis horas na manhã seguinte. Harry desligou-o depressa e se vestiu em silêncio.

Não podia acordar os Dursley. Desceu as escadas sorrateiro sem acender nenhuma luz.

Ia esperar pelo carteiro na esquina da Alfeneiros e receber primeiro as cartas endereçadas ao numero quatro. Seu coração batia com força quando atravessou sem ruído o corredor escuro até a porta de entrada.

— AAAAAIIIIIEEE!!!

Harry deu um salto no ar, pisara em alguma coisa grande e mole no capacho, uma coisa viva!

As luzes se acenderam no primeiro andar e, para seu horror, Harry percebeu que a coisa grande e mole tinha a cara do tio Válter estava dormindo junto à porta de entrada em um saco de dormir para impedir que Harry fizesse exatamente o que estava tentando fazer. Gritou com Harry quase meia hora e depois lhe disse para ir preparar uma xícara de chá. Harry foi para a cozinha, arrastando os pés, infeliz, e quando conseguiu voltar o correio tinha sido entregue, bem no colo de tio Válter. Harry viu três cartas endereçadas em tinta verde.

Tio Válter não foi trabalhar naquele dia. Ficou em casa e pregou a portinhola para cartas.

— Entende — explicou à tia Petúnia por entre os lábios cheios pregos — se eles não puderem entregar então terão de desistir.

— Não tenho muita certeza de que isto vai dar certo, Válter.

— Ah, a cabeça dessa gente funciona de maneira estranha, Petúnia eles não são como você e eu — disse tio Válter tentando bater um prego com um pedaço de bolo de frutas que tia Petúnia acabara de lhe trazer.

Na sexta-feira chegaram nada menos que doze cartas para Harry. Como não passavam pela portinhola da correspondência, tinham sido empurradas por baixo da porta, metidas pelos lados e algumas até forçadas pela janelinha do banheiro no térreo. Tio Válter ficou em casa de novo. Depois de queimar todas, apanhou martelo e pregos e fechou com tábuas as frestas das portas da frente e dos fundos, de modo que ninguém podia sair.

Cantarolou "Pé ante pé no campo de tulipas" enquanto trabalhava, e se assustava com qualquer ruído.

No sábado as coisas começam a fugir ao seu controle. Vinte e quatro cartas acabaram entrando em casa enrolada e escondida em duas dúzias de ovos que o leiteiro, muito confuso, entregara à tia Petúnia pela janela da sala de estar. Enquanto tio Válter dava telefonemas furiosos para o correio e a leiteria tentando encontrar alguém a quem se queixar, tia Petúnia picava as cartas no processador de alimentos.

— Mas quem é que quer falar tanto assim com você? — Duda perguntou espantado a Harry.

Na manhã do domingo, tio Válter sentou-se à mesa do café parecendo cansado e um tanto doente, mas feliz.

— Não tem correio aos domingos — lembrou a todos, contente passando geléia nos jornais, nada de cartas idiotas hoje...

Alguma coisa desceu chiando pela chaminé do fogão enquanto ele falava e bateu com força em sua nuca. No instante seguinte, trinta ou quarenta cartas saíram velozes da lareira como se fossem tiros. Os Dursley se abaixaram, mas Harry deu um salto no ar para apanhar uma...

— Fora! Fora!

Depois que tia Petúnia e Duda tinham corrido para fora protegendo o rosto com os braços, tio Válter bateu a porta. Eles podiam ouvir as cartas disparando para dentro da cozinha, ricocheteando nas paredes e no chão.

— Já chega — disse tio Válter, tentando falar com calma, mas ao mesmo tempo, arrancando tufos de pêlos dos bigodes. — Quero vocês aqui de volta em cinco minutos prontos para sair. Vamos viajar. Ponham apenas algumas roupas nas malas. Não quero discussão!

Ele parecia tão perigoso com metade dos bigodes arrancados que ninguém se atreveu a discutir. Dez minutos depois eles tinham retirado as tábuas para passar nas portas e estavam no carro, correndo em direção a estrada. Duda fungava no banco traseiro, o pai tinha lhe dado um tapa na cabeça por atrasá-los tentando empacotar a televisão, o vídeo e o computador na mochila esportiva.

Eles viajaram no carro. E viajaram. Nem tia Petúnia se atrevia a perguntar aonde iam. De vez em quando tio Válter fazia uma curva fechada e seguia na direção oposta por algum tempo.

— Para despistá-los... Despistá-los — resmungava sempre que fazia isso.

Não pararam para comer nem beber o dia inteiro. Quando a noite caiu Duda estava uivando. Nunca tivera um dia tão ruim na vida. Estava com fome, sentia falta dos cinco programas de televisão que queria assistir e nunca levara tanto tempo sem explodir um alienígena no computador.

Tio Válter parou finalmente à porta de um hotel de aspecto sombrio na periferia de uma grande cidade. Duda e Harry dividiram um quarto com duas camas iguais e lençóis úmidos que cheiravam a mofo. Duda roncou, mas Harry ficou acordado, sentado no peitoral da janela, espiando as luzes dos carros que passavam enquanto pensava...

Comeram cereal velho e torradas com tomates enlatados frios no café da manhã do dia seguinte. Tinham acabado de comer quando a proprietária do hotel aproximou-se da mesa.

— Com licença, mas um dos senhores é o Sr. Harry Potter? É que eu tenho umas cem dessas na recepção. — E ergueu uma carta para eles poderem ler o endereço em tinta verde:


Sr. H. Potter

Quarto 17

Railview Hotel Cokewrth


Harry tentou pegar a carta, mas tio Válter afastou sua mão. A mulher ficou olhando.

— Eu recebo as cartas — disse tio Válter, levantando-se depressa e seguindo a mulher que se retirava do salão de refeições.

— Não seria melhor simplesmente irmos para casa, querido? — tia Petúnia sugeriu timidamente horas depois, mas tio Válter não parecia ouvi-la. Exatamente o que andava procurando ninguém sabia. Ele os levou até o meio de uma floresta, desceu do carro, espiou a volta, sacudiu a cabeça, tornou a embarcar no carro e partiram outra vez. A mesma coisa aconteceu no meio de um campo arado, no meio de uma ponte pênsil e no alto de um edifício garagem.

— Papai enlouqueceu, não foi? — Duda perguntou, cansado, à tia Petúnia no fim daquela tarde. Tio Válter estacionara no litoral, passara a chave no carro com todos dentro e desaparecera.

Começou a chover. Grandes gotas batiam no teto do carro.

Duda choramingou.

— É segunda-feira — falou à mãe. O Grande Humberto vai se apresentar hoje à noite. Quero estar em algum lugar que tenha televisão.

Segunda-feira. Isto lembrou a Harry uma coisa. Se era segunda-feira e em geral podia-se confiar que Duda soubesse os dias da semana, por causa da televisão, então o dia seguinte, terça-feira, era o décimo primeiro aniversário de Harry.

Naturalmente seus aniversários não eram lá muito divertidos, no ano anterior, os Dursley tinham-lhe dado um cabide e um par de meias velha do tio Válter. Ainda assim, não se fazia onze anos todos os dias.

Tio Válter voltou sorrindo. Carregava um pacote comprido e fino e não respondeu à tia Petúnia quando ela perguntou o que comprara.

— Encontrei o lugar perfeito! — falou. — Vamos! Saiam todos!

Fazia muito frio do lado de fora do carro. Tio Válter apontou para o que parecia ser um grande rochedo no meio do mar.

Encarrapitado no alto do rochedo havia o casebre mais miserável que se pode imaginar. Uma coisa era certa, ali não havia televisão.

— Estão anunciando uma tempestade para hoje! — disse tio Válter alegre, batendo palmas. — E este senhor teve a bondade de concordar em nos emprestar seu barco!

Um homem desdentado vinha descansadamente em direção a eles, e apontava com um sorriso muito maldoso para um barco a remos velho que subia e descia nas águas cinza-grafite lá embaixo.

— Já comprei algumas rações para nós — disse tio Válter — portanto, todos a bordo!

Fazia muito frio no barco. Salpicos de água gelada do mar escorriam pelos pescoços deles e um vento cortante fustigava seus rostos. Depois do que pareceram horas eles chegaram ao rochedo, onde tio Válter, escorregando, levou-os ate a casa em ruínas.

O interior era horrível, cheirava a algas marinhas, o vento assobiava pelas frestas nas paredes de tábuas e a lareira estava úmida e vazia. Havia apenas dois quartos.

Afinal as rações de Tio Válter eram uma embalagem de cereal para cada um e quatro bananas. Ele tentou acender a lareira, mas a embalagem de cereal apenas fumegou e carbonizou.

— Aquelas cartas viriam a calhar agora, hein? — disse ele animado.

Estava de muito bom humor. Obviamente achava que ninguém teria chance de alcançá-lo ali, durante uma tempestade, para entregar cartas. Harry concordava intimamente, embora este pensamento não o animasse nem um pouco.

Quando a noite caiu, a tempestade prometida desabou ao redor deles. A espuma das altas ondas chapinhava nas paredes do casebre e um vento ameaçador sacudia as janelas imundas. Tia Petúnia encontrou uns cobertores mofados no segundo quarto e preparou uma cama para Duda ao sofá comido pelas traças. Ela e tio Válter foram se deitar na cama cheia de calombos ao lado e deixaram Harry procurar a parte mais macia do assoalho e se enrolar no cobertor mais rasgado e ralo.

A tempestade rugia cada vez com maior ferocidade à medida que a noite avançava. Harry não conseguia dormir. Tremia e revirava, tentando encontrar uma posição confortável, seu estômago roncando de fome. Os roncos de Duda eram abafados pela trovoada que começou por volta da meia-noite. O mostrador luminoso do relógio de Duda, que estava pendurado para fora do sofá em seu pulso gordo, informava a Harry que dentro de dez minutos ele completaria onze anos. Deitado, ele viu seu aniversário se aproximar, perguntando-se se os Dursley se lembrariam, perguntando-se onde estaria o remetente das cartas agora.

Faltavam cinco minutos. Harry ouviu alguma coisa estalar lá fora. Desejou que o teto não caísse, embora quem sabe conseguisse se esquentar se isto acontecesse. Quatro minutos.

Talvez a casa na Rua dos Alfeneiros estivesse tão abarrotada de cartas que quando voltasse ele pudesse surrupiar uma.

Três minutos. Seria o mar batendo tão forte na rocha? E faltavam dois minutos, que barulho esquisito de trituração era aquela? Será que a rocha estava se desintegrando no mar?

Mais um minuto e ele completaria onze anos. Trinta segundos... Vinte... Dez... Nove... Talvez acordasse Duda, só para aborrecê-lo... Três... Dois... Um...

O casebre todo estremeceu e Harry sentou-se reto, arregalando os olhos para a porta. Havia alguém lá fora, que batia querendo entrar.

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